Mas doutor, vai ficar uma cicatriz?
Quantas vezes essa é a nossa primeira pergunta. Fazemos de tudo pra não deixar uma cicatriz. Mas pensando bem, as cicatrizes são historias das nossas vidas, que ficam impregnadas no nosso corpo, na nossa pele.
Eu tenho varias. Uma na sobrancelha, do lado esquerdo. Quando eu era pequena, uns 5 anos provavelmente. Minha mãe estava lavando a garagem. Eu tinha uma vassourinha e um rodinho de criança. Acho que naquela época, antes do politicamente correto, as meninas ganhavam mini objetos de limpeza, pra aprender a serem mulherzinhas. Eu fui buscar meu rodinho, e na volta, descendo a escada, tropecei, e desci voando, até a curvinha em baixo, onde bati com a cara na parede. Não lembro muito bem, acho que uma vizinha levou a gente até o pronto socorro. Eu fiquei deitadinha numa maca, e o médico colocou um pano cobrindo o meu rosto, com um buraco em cima da parte à costurar. Eu lembro que pelo cantinho do buraco eu vi a agulha vindo em direçao à minha testa. Agora tenho uma falhazinha na sobrancelha.
Depois tenho uma marquinha no cotovelo. Quase que não da mais pra ver. Eu devia ter uns 12 anos, e estávamos fazendo guerra de agua na escola, na Inglaterra. No final do pátio, na frente da sala de ginástica. O chão era de piche, com bastante pedrinhas. E tinha um menino correndo atrás de mim, com uma bixiga cheia de agua. Eu, fugindo, escorreguei. Lembro do meu pai, mais tarde em casa, com um pinça, tirando as pedrinhas na minha pele. Tinha nas mãos e no cotovelo. Eu era magrela demais, então os cotovelos ossudos machucavam fácil quando eu caia.
Passaram muitos anos desde aquela época. Eu sempre dizia, toda orgulhosa, que fora os pontos na testa, eu nunca tinha estado em um hospital, nunca tinha quebrado nada. Devia ter ficado quieta. Um belo dia, já morando em Paris, estava lavando a louça. Tinha uma formiguinha passeando na minha pia. Eu não queria afogar a formiga, então fiquei observando ela, em vez de olhar para o que estava fazendo. Quando fui colocar um copão de vidro pra secar, errei. Ele bateu na quina da pia, e espatifou na minha mão. Foram 5 pontos em um dedo, e um buraco no outro. Bastante sangue espalhado pela casa, parecia filme de terror.
E três semanas depois, quando o dedo estava se recuperando mas continuava enfaixado, fui abrir uma latinha de milho. O roomeite que morava comigo olhou pra mim e perguntou se podia ajudar. Eu quis mostrar que já estava boa da mão, que podia fazer sozinha. Foram mais três pontos na outra mão. E algumas perguntas constrangedoras no hospital, que já tinham minha ficha...
E todas essas marcas que ficaram na minha pele na verdade nunca encomodaram. Não precisava aquela preocupação toda com as cicatrizes. Mesmo se naquela hora pareciam importantes.
A cicatriz mais recente na minha vida não esta na minha pele, ela esta no corpo da minha mãe. Vai de um ponto abaixo do seio, da a volta e chega até a metade das costas. Isso sim, que é cicatriz. E ela nunca reclamou, nunca perguntou pro medico se daria pra continuar usando bikini. Porque essa cicatriz salvou a vida dela. E quem se preocupa com uma marquinha dessas quando a vida de uma pessoa esta em jogo? Ela esta no hospital, se recuperando, pouquinho à pouquinho. E quando um membro da família fica no hospital, na verdade, nos todos ficamos. Estamos esperando pra ter alta um dia desses, e estamos esperando pra ver como vão ficar aquelas cicatrizes dela...